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“Os homens serão amantes de si mesmos. Amantes do dinheiro. Desleais
não terão autodomínio,
serão ferozes e não terão amor à bondade. Serão
traidores, enfunados de orgulho, amantes dos prazeres. Os homens iníquos
e os impostores passarão de mal a pior”
( 2 Timóteo 3: 1-5 )
Não precisei vestir camiseta porque geralmente já durmo
com ela, e na verdade nem preciso vestir nada, o calor da noite chupava
toda a água que sempre dava um trabalhão de engolir mil vezes
de madrugada, isto quando não acordava de madrugada e mijava o que
me deixava vivo. Então vestia porque gostava de sentir o contato
do algodão no meu corpo, e fazia parte do prazer saber que
aquilo era supérfluo, então não era porque meu corpo
não queria que eu não iria fazer, mas eu sabia que pensar
nisto era besteira, ainda que me distraísse para que eu não
ficasse tonto caminhando pelo corredor, porque minha cabeça não
tinha estabilidade e eu via tudo com deslocamento diagonal. Quando parei
à janela, funguei o sovaco e passei a mão pela madeira
pouco envernizada. O sol batia na lente da camêra. Apanhei um resto
de palito queimado e segurei entre os dedos, fingindo que fumava. Nunca
havia posto um cigarro na boca, mas gostava daquela pose de personagem
do Tarantino planejando a próxima ação.
Antes de atingir a porta meu irmão gritou do quintal e me lembrou
de comprar mais absorvente. Tranqüilizei o pequeno e fui balançando
os braços pela calçada até a farmácia. Alguns
minutos e lá estava o ridículo comprando absorventes para
o irmão, suportando uns olhares de estranhamento bem discretos,
se bem que podia ser impressão minha. Eles deviam achar normal um
cara levando para a mulher, inclusive o vovô simpático que
pegava dois pacotes concordava mentalmente comigo, mas se eu tivesse mulher
botava ela para comprar, e não eu ficasse levantando cada pacote
para ver qual deles possui o bilhete premiado com a passagem para Fernando
de Noronha. Não dava tempo para passar de novo em casa, então
acabei seguindo o rumo da casa de Tibério com o consolo de ter os
braços mais estáveis pelo peso de pena das sacolas.
Num ambiente amplo de grama rala, enfeitado por mosquinhas e um cachorro,
sombreado por um frondoso pé de castanhola, jazia pendurado de um
galho um panda encolhido de plástico, com seus braços
colados ao corpo e mãos envoltas por luvas de boxe dispostas à
altura da cabeça. O pugilista apoiou suas mãos nas luvas
do animal e ficou suspenso efetuando várias flexões. Enxugando-se
depois com uma toalha meio suja, queimou com seu cigarro a ponta do nariz
do panda, fazendo escapar odores que correspondiam a determinado signo
do zodíaco. O seu era touro-alfazema, conforma estava indicado na
embalagem do produto, atirado no chão à distância de
dois metros. Soltou a fumaça dos pulmões e fez uma careta
quando deu por mm, entrando com dificuldade pelo portão.
- A menina tá virando moça - frescou o imbecil,
sentado na varanda, assim que abri o ferrolho.
- Não é menstruação. Eu tô
sangrando assim de tanto comer sua irmã - repliquei preocupado com
a possibilidade do cachorro chato dessa figura rasgar os pacotes, enquanto
lambia minhas pernas. - Tu falou com o Seu Augusto?
- Conversamos ontem e ele concordou em perdoar as parcelas, os
juros, tudo mesmo - escancarava um sorriso e batia com a palma da mão
no meu ombro. - Agora é com você, porque a propaganda que
eu pude fazer eu já fiz. O homem confia em você, mas já
espera há mais de um mês e tem que trazer um rim certinho,
então aproveita seu trabalho na universidade , escolhe bem a compatibilidade
da vítima e manda ver. E voltar atrás é brincar com
tua vida, já falei. - lembrou num tom sério de irmão
mais velho.
Tibério voltou a sentar. Como ficamos um tempo sem ter nada
para conversar, passamos uma vista na copa do pé de castanhola do
jardim . O filho do Seu Augusto costumava vir todo Domingo com uns amigos
filar o pó do capanga do pai, e depois ficavam pulando ao redor
da árvore, chacoalhando suas correntes, piercings e óculos
escuros de acordo com o que a zoada de vídeo-game da Blazer do garoto
lançava no ar. O barulho não me irritava muito, embora atrapalhasse
minhas conversas com Tibério. O que eu não gostava mesmo
de ver eram aqueles rapazões se beijando na boca e levantando a
camisa um do outro para beliscar os mamilos. No ano passado a coisa havia
se tornado um pouco mais séria. Um amigo de boate do menino resolveu
convidá-lo para um racha. O carro da dupla bateu de lado com um
pobre cristão que vinha pela perpendicular, e aí o filhinho
de papai foi curtir discoteca na fluorescente quebrada de seu quarto de
hospital. Um tempo depois teve de começar a limpar o sangue
numa máquina por causa de uma lesão provocada pelo acidente.
O doutor na época foi taxativo : precisa de transplante. Claro que
depois o Seu Augusto mandou meter a chibata neste amigo do filho até
a cara do sujeito parecer com aquele bonequinho de braços para cima
de um quadro do Picasso, mas isto já é outra história.
O que dizia mesmo respeito a meu amigo de infância é que meu
suposto posto na faculdade me permitia acesso a um grande estoque de pecinhas
de relógio humano.
Passei a olhar para grama desgastada e Tibério começou
a fumar. Seus olhos vermelhos observaram o cachorro cavacar a terra
num canto do jardim. Não tinha nada de bom para pensar, então
passei a olhar subtilmente para o safado e pensei sobre a vida louca do
cara, em seus livros do Carlos Castañeda e de seu estilo de vida.
“Melhor viver a mil por hora apenas trinta anos do que sessenta anos quase
parando” . Como se a vida fosse uma corrida, mas não entendia o
critério dele, já que a distância percorrida sendo
lento com mais tempo de corrida seria a mesma correndo muito em pouco tempo.
Pensei no Borges falando de cometer mais besteiras numa segunda chance
na vida, e achei por bem assumir que minha maior besteira seria nunca cometer
besteiras, até porque sou tímido demais para fazer alguma
descontração no mundo. Enigmática esfinge sóbria
sorrindo quando ninguém está presente, que costuma ser patética
bebendo água de madrugada, segurando o copo de vidro e fingindo
que está bebendo vodca. Não sei porque mas sempre quando
estou mal só penso nos meus momentos mais estúpidos.
Atravessei o portão sem me despedir. Entrando em casa poderia
narrar alguma cena mágica, gastando saliva para descrever a figura
geométrica luminosa inclinada entre a janela e o chão, e
de como aquelas inúmeras partículas de poeira suspensas que
tornam o raio de sol visível lembram um monte de fadinhas suavemente
caindo, saindo da escuridão para a luz e novamente mergulhando na
escuridão; mas tudo de bonito que eu tentava tirar da cabeça
e projetar na poeira era perfume para ofuscar a merda do nosso cachorro
deitado no concreto quente com um monte de mosquinha rodopiando em cima
do focinho, o suor grudando minha cueca ao calção, a TV ligada
em algum enlatado americano de 1984, e meu irmão estirado pelo sofá
com a mão dentro da bermuda remexendo seu saco, cheirando a batata
frita. A primeira medida a ser tomada para sair do pequeno grande mundo
seria pagar a dívida. Entreguei os absorventes e fui pegar
a revista pornô de meu irmão debaixo da cama onde guardo as
cartas.
Abri na seção de contatos e revi o anúncio mais
interessante da revista. Uma fotografia exibia um gordo esparramado em
um sofá, coberto apenas com uma tanga cuja cor simulava pele de
leopardo, com sua palma da mão esquerda placidamente pousada no
joelho esquerdo, as pernas ligeiramente dobradas e um sorriso libidinoso
que a enorme tarja negra que cobria os olhos não conseguia diminuir.
Abaixo o desenho estilizado de uma caixinha de correio com um título
ao lado escrito “Homem quer ser castrado”. Abaixo assim estava escrito:
“Empresário, 38 anos, 1,80m, 115kg, claro, culto, higiênico
e educado. Procuro médica de 18 a 30 anos para que realize minha
maior fantasia: ter removido um de meus testículos através
de uma cirurgia asséptica. Dou preferência a médicas
ou enfermeiras que residam na região Nordeste ( viajo à região
nesta época por conta de negócios ). Aceito dupla de médicas
com enfermeiras. Estudo proposta de casais. Fone agiliza contato.”
Seguia seu pseudônimo e endereço da caixa postal. Até
os mais estúpidos percebem grandes oportunidades quando sua sombra
exuberante encobre qualquer resquício de moral ou introspeção.
O plano todo era relativamente simples, e envolvia a frustração
de um empresário paulista, a não ser que sua fantasia pudesse
ser redirecionada a outro órgão... Havia redigido logo em
seguida uma resposta atraente, o que foi muito fácil, pois caligrafia
não tem sexo. Não enviei foto alguma e contei com a sorte
para que a inusitada proposta não despertasse atenções
concorrentes, e fui abençoado por Fortuna. Dentro de um mês
e meio havia chegado a resposta.
Sua carta estava dobrada em minhas mãos. Numa letra primorosa
de homem culto, descrevia sua alegria em encontrar-me, apesar de enfatizar
o desapontamento de não ter recebido foto ou telefone. Quase me
arrependi de não ter combinado colocar meu irmão para atender
um possível telefonema com sua voz de pré-púbere de
pseudo-mulher facilmente enganadora, mas felizmente não era necessário
uma vez que o fulano não parecia ter recebido muitas propostas de
mulheres que não fossem capazes de prestar mais do que riso à
sua tara. Num discurso apreensivo muito mal disfarçado narrou detalhes
irrelevantes de sua vida de rico, o que me valeu certa inveja e raiva
que tentei potencializar como futuro contrapeso de consciência. Seguiu-se
novas trocas de carta até o momento em que julguei o cordeiro pronto
para o abate. Era princípio de Março e o escroto estava prestes
a visitar uma vez mais a capital cearense, explicitando suas expectativas
em grandes cartas de oito páginas em que era recorrente sempre terminar
com um profunda esperança de um dia bater punheta com a lembrança
fresca de ser um capado. Como das outras, havia uma mancha ao pé
da página que lembrava marca de esperma. Enfiei todos os papéis
no bolso e saí para me encontrar com Germana na praia de Iracema.
Distraía-me enquanto esperava sentado no bar, tentando aturar
a audição de mais um clichê da MPB. Germana sobreveio
sem eu me dar conta, segurando firme sua bolsa de grife e engendrando uma
marcha arrogante que fazia tremular seus longos cabelos lisos de cor quase
tão escura quanto os óculos que ela suavemente retirou após
sentar à mesa. Mirando em meus olhos terminou por me cumprimentar
com um sorriso mais falso que uma nota de vinte reais. Seu alcance era
indefinido e o mundo de suas possibilidades não era limitado pela
esfera da moral, esfera há muito transposta desde a adolescência.
Germana na época de nosso segundo grau competira em atletismo, e
sabidamente engravidara um pouco antes para poder ter um maior volume sangüíneo
circulante e ganhar todas as provas. Sem remorsos, após passar os
jogos dopada de humanidade, abortara seu filho. Procurei me estirar na
cadeira sem relaxar a guarda, livre de seu alcance que não distinguia
amigos de inimigos desde nosso primeiro semestre na faculdade de Direito.
Era possível compreendê-la pois quem trata o próximo
como brinquedo não vê senão pertence ao que seria amigo
ou inimigo. Puta! Fiquei sorrindo por estar livre de sua área de
influência e mais ainda por saber que minha ex-colega sabia não
poder me atingir como antes. Rica! Namorava um promotor e um juiz. Já
trabalhava nas varas da justiça, enquanto as varas da justiça
trabalhavam nela. Controlei gargalhar diante de meu último pensamento,
bebi mais um gole, e comecei a contar toda a história.
Levou dez minutos para que a vadia parasse de rir, e o dobro disto
para que ela se desse conta que não era brincadeira minha. Fechou
o sorriso de dentes e o manteve nos lábios, incapaz de esconder
uma certa satisfação íntima por se envolver em algo
proibido. Remexeu o cabelo, marejou os olhos pelo calçadão
e arrematou:
- Meu querido, é ingenuidade sua imaginar que eu
faria isto.
- Você não se sai bem fingindo não
se lembrar das fotos.
- Oh meu filho, estou morrendo de medo dessas fotos...
Olha sinceramente que eu pensei que você fosse mais criativo, tivesse
imaginação maior que bancar o sabidão chantagista
? menosprezou, abrindo novamente o sorriso, cínico até não
mais poder.
- Não. Escuta, Germana. Não adianta fingir que
tu não liga para as fotos. O juiz é burro, mas não
é cego que não reconheça provas irrefutáveis.
Sabe como é... É especialidade dele julgar em cima
de evidências, e num instante ele te bota para correr e arranja outra
estagiária.
Fechou seu sorriso e começou a me olhar séria tentando
me intimidar. Imune ao ataque manjado, dei-lhe compensações.
— Faz de conta que é mais uma de suas peças. Eu
me lembro quando tu fez papel de enfermeira no festival, então é
quase a mesma coisa. E olha, o otário deve vir com a carteira cheia,
talvez até um relógio de ouro. Fica tudo para você,
como um presente. - acresci uma pausa com um mais um gole - Eu já
tenho tudo esquematizado para ninguém pegar a gente, além
do mais você nunca sentiu culpa por prejudicar ninguém.
- Meu amor... Mas eu nunca fiz este tipo de coisa. E eu nunca
mataria alguém por você. Matar é muito suburbano para
o meu gosto. Fazer sofrer é muito mais divertido, mas não
tem muita graça brincar com uma vítima desconhecida. Tenho
saudades de brincar com você. Claro que você ainda se lembra,
não é?
Neste ínterim havia pagado a conta e já estava de pé
apontando para a calçada. Sua última pergunta não
merecia resposta, se bem que apressou meu aguardado comentário final:
- Eu me encarrego de deixar nosso homem vivo. Já ajudei
numa montanha de cirurgia, então não precisa se preocupar.
Só mais uma coisa, Germana... Eu não sou nem seu filho, nem
seu querido e nem seu amor. Eu te ligo.
Falei um pouco em monólogo, pois quando ainda estava acabando
a pronúncia de “filho”, ela apanhou sua bolsa e ainda articulou
um impaciente “Poupe-me” antes de sumir pela calçada sacudindo seus
refinados brincos. Busquei a despreocupação de uma respirada
da brisa do mar e fui mordiscando a ponta de um palito, como se mascasse
um charuto, convertido em Al Capone alencarino, imaginando se meu boné
faria o papel de chapéu de gangster. Resolvi visitar um tio próximo,
encarei as pessoas com que cruzava pela calçada e desafiei quatro
policias pelo caminho: “Se algum de vocês for telepata, então
é a sua chance de me pegar. Estou pensando no crime, veja! Direto
sem parar!”.
Meu tio abriu a porta, deixando à mostra o impressionante quadro
de Che Guevara sobre a parede. Posso dizer que o tio José é
uma figura! Alto, com rugas fundas ao redor dos olhos, barba grisalha espalhafatosa,
sempre combinando com o bermudão e o chinelão, sem esquecer
o toque final com a calvície pronunciada e o cabelo passando do
pescoço. Tinha a tranqüilidade de aposentado ocioso perturbada
apenas pelas minhas visitas mensais, ocasiões em que eu tinha por
costume raspar a tigela de doce de maracujá primorosamente feito
pela tia Bárbara. Sentamos juntos na sala e para tornar-me melhor
interlocutor tornei-me Fidel, reciclando o charuto de palito. Minha tia
serviu-me o almejado doce ao mesmo tempo que contava sobre a ida de meu
primo ao interior para uma comemoração de antigos colegas,
assunto francamente irrelevante. No meio da degustação, divertia-me
quando meu tio suspendia de supetão nossa conversa trivial para
aproximar-se e num sussurro débil, quase como um segredo, discorria
sobre suas divertidas teorias conspiratórias. A pauta do dia começava
pelos semáforos. “Mas nunca te ocorreu pensar qual foi o critério
de escolha das cores? Os comunistas inspiravam ares revolucionários
sobre a plebe dos países capitalistas. Naturalmente, a escolha da
bolchevique cor vermelha destinou-se menos a lembrar da aversão
ao sangue derramado do que para de forma subliminar incutir medo da revolução
às novas massas motorizadas”. Imprevisível, se exacerbou
como doutras vezes. “Em vez dessa hipocrisia burguesa deveriam logo escrever
‘capitalismo’ no sinal verde, ‘democracia socialista’ no amarelo e ‘comunismo’
no vermelho. Todo mundo apertando o freio ante o comunismo! Uma canalhice!”.
Concordei, sorrindo, e pensei com persistência para que uma suposta
telepatia senil pudesse me captar. Pensei assim: “Rio de suas histórias,
tio, porque todo mundo é igual a mim e não me importa a cor
do semáforo porque eu ultrapasso seja como for... Seguro o volante
e arranco à toda gritando e fazendo tremular um gordo rim pendurado
na ponta da antena do rádio. Nunca vou te matar, tio, porque me
divirto com nossas discrepância temporais”.
Antes que ele pudesse desenvolver seu novo tema a respeito de como
a semelhança facial entre os chineses possibilitou um socialismo
mais ideal que a da Rússia em virtude da sensação
de conforto em reconhecer-se na multidão que isto acarretava, pronunciei
promessas de não tardar em fazer outra visita e adentrei o corredor.
Inesperada foi minha angústia ao quase trombar com o retrato de
Che a ponto de sentir seu hálito de carismático tabagista,
e ao tentar defini-la só conseguia pensar em nostalgia de um tempo
onde homens eram homens corajosos e transcendentes com todo o gabarito
de ter capacidade de deixar um par de rins íntegros ou podres destinados
a serem degradados dentro da sepultura. Fiz que Ernesto olhava para algum
ponto atrás de mim e abri a maçaneta de um golpe, atravessando
a rua trôpego de intoxicação dos anos 60.
Alguns dias depois, estava ao volante de um carro estacionado dentro
do aeroporto. Recordei com a morena do banco de trás todos
os próximos passos, não por precaução, mas
por não termos nada para conversarmos enquanto esperávamos
Luís. Seria estúpido puxar conversa sobre sua nova marca
de celular, ou que batom ela vai usar para ir à recém inaugurada
boate em Fortaleza. A promessa de que eu a entregaria as fotos como garantia
de não contar com sua colaboração forçada estava
expressa no pacote dentro do porta-luvas. O som de carrinhos carregando
malas recitava uma conversa mais instrutiva. Dobrei de leve o retrovisor
e contemplei suas duas coxas apetitosas que escapavam da minissaia de couro
preto. Germana séria de novo com óculos escuros esfregava
a palma de uma das mãos nas costas da outra, calculando os procedimentos
que melhor a deixariam calma. Depois de pesados minutos de espera irrompeu
no setor de desembarque um elegante senhor obeso de discreta calvície
de barba por fazer. Nervoso, manipulava os óculos enquanto explorava
toda a presença humana dos arredores. Liberou um sorriso reprimido
por horas de viagem, e focalizou nosso carro que estacionou rente.
Levantei o banco de passageiros, desci do carro, e numa formal apresentação
arrumei sua pequena bagagem no porta-malas. Abri a porta de passageiros
e voltei à direção. Como um menino assustado, que
teme parecer levado, Lúcio abaixou a cabeça e sentou-se ao
lado de Germana de mãos juntas e não ousando olhar para o
lado. A advogada abriu o manjado sorriso, removeu os óculos e começou
a falar num tom tão artificial que apertei com força o volante,
temendo que ela pusesse tudo a perder.
— Oi neném.
- Olá doutora - pareceu perturbado com a minha presença.
- Perdão pela pergunta, mas quem é este homem? Achei que
tinhas enfermeiras à disposição. Não citaste
nada sobre outro homem - seus olhos ficaram miúdos de medo.
- Este é um de meus pacientes, frouxo, que por coincidência
também é médico! Ou você achou que era especial?
Também será transformado em mocinha que nem você e
está me pagando pela cirurgia servindo-me como chofer durante algum
tempo - atuou como uma atriz nata e ainda contornou a confusão
que se formou na cara do passageiro - Mas para você é
de graça. Gostei de sua foto, meu porquinho - e apalpou a bochecha
do infeliz.
O futuro eunuco pareceu reagir com gratidão canina, e arfou
por um momento com a língua de fora, sem tirar os olhos da sandália
de couro que Germana maliciosamente balançava num compasso aparentemente
disfarçado. Seus olhos pareceram procurar exprimir o que sua boca
não ousava, quase gemendo de excitação. Fiquei imaginando
seu membro tenso de sangue anexo à duas bolas que queriam ser uma.
- Minha rainha - babava, suando de emoção, deixando a
armação escorregar pelo nariz, com a língua de fora.
Tirou uma fotografia do bolso - Eu vinha a viagem toda beijando
sua foto. És mesmo muito linda, assim como eu imaginava em meus
sonhos mais deliciosos. Eu, deitado na cama, chupeta na boca, enrolado
em fraldas, e a senhora entrando no quarto, abrindo minha roupinha e brincando
com meu pintinho murcho, lamentando não ter tido uma menina, resolvendo
a frustração cortando meu pintinho fora com uma tesoura de
costureira - abriu tanto a bocarra ao ponto de alegrar qualquer dentista
do mundo.
- Olha só o tamanho dessa boca! - animada, sentou-se um pouco
de lado e ergueu a perna direita ao nível do colo - Lambe
a sola da minha sandália com essa sua língua de cachorro,
vai! Isso! Mais embaixo, na pontinha também.
Piscou para a minha imagem no espelho. Fiquei um pouco mais sossegado
em constatar que ela também aparentava estar relaxada, e fiquei
dando voltas, subindo a descendo a Aguanambi. O barulho de chupadas e lambidas
não era alto e a cabeça de Lúcio estava muito baixa
para ser percebida pelos motoristas do lado, assim tudo era motivo para
um discreto conforto. Em dado momento, Germana arregaçou os poucos
cabelos do paulista e interrompeu a bajulação já certamente
tediosa, manifestada por um suspiro feminino cansado. Lúcio ainda
demorou-se um pouco, com a pele mais suada ainda, brilhante com o excesso
de gordura sedimentada, tomando fôlego e lambendo os beiços
afim de colher os últimos resquícios de sujeira. Fechei a
cara e fuzilei Germana pelo retrovisor. Retendo o momento até quando
pudesse, declarou:
- Estou morta de tesão, veadinho! Ando sempre com todo
meu instrumental no carro. Tenho certeza que quanto mais rápido
for a coisa, tanto melhor para você. Heitor, pega a BR a vamos para
um motel - acarinhava a cabeça do incrédulo empresário
- Em duas horas a gente termina tudo, e o quarto é mais limpo
que o de qualquer hospital daqui. Uma hidromassagem até ajuda a
amolecer seu saquinho... Ai, que gostoso... Vai mais depressa, Heitor!
- Não... Eu quero ir para o hotel. Deixei um quarto
reservado e tenho que ligar para minha empresa, senão a gente perde
contrato com nosso novo distribuidor - acuado ajeitou várias vezes
a gravata em busca da gesticulação mais polida possível,
contudo fadada ao fracasso ante nossa premeditação.
- Então é melhor voltar para a empresa porque lá
só tem criança burra que não sabe resolver as coisas
por conta própria, que nem você, idiota! Um porco medroso
que nunca vai ter certeza do que quer, condenado a viver recalcado uma
vidinha nojenta, frustrante, com um pau ridículo no meio das pernas
só com a serventia de mijar! Heitor, vamos voltar para o aeroporto
e descarregar este monte de merda que não teve motivos para entrar
naquele avião - empurrou o homem com violência, deixando-o
trêmulo desta vez de medo, mudo, balançando a cabeça,
olhando para ela, sem saber o que dizer, e para mim como que pedindo ajuda
ou ao menos compreensão da expulsão do paraíso. Tentou
falar, mas começou a gaguejar, tomou ar, enfim conseguindo.
- Perdão... Eu não quis irritá-la, doutora.
Perdão se pensaste que foi esta minha intenção. Estou
às suas ordens, lembra-se? Depois estes assuntos podem ser resolvidos...
Por favor não me mande de volta, por favor, por favor, por favor.
Ela riu rápida e estridentemente. Deu um tapa no rosto dele,
e manteve um belo sorriso cínico, que o tranqüilizou. Liguei
a sinaleira e manobrei para o portão de entrada do motel mais próximo,
adornado com um letreiro de néon defeituoso que tornava o nome hermético.
Os dois agora estavam sossegados, sem trocar uma palavra, joelhos
paralelos e imóveis, como que acumulando forças para o próximo
momento, ou comungando de um secreto sacramento milenar. Recebi a chave
do quarto na portaria, estacionei dentro da vaga correspondente, desliguei
o veículo, desci e fechei a cortina da vaga.
Um longo silêncio apoderou-se de nosso trio. Ainda que distante
pensei ter distinguido um casal conversando no quarto ao lado. Germana
passou as mãos pelo cabelo pela milionésima vez e levantou-se
do banco, pisando fora do carro e estendeu a mão para que o tímido
homem também saísse. Agachou-se, retirou uma maleta guardada
embaixo do banco da frente e quando se levantava acariciou entre as pernas
de Lúcio por cima da calça. Ele apertou os lábios
da boca fechada e escorregou o braço pelo capô. Senti que
estava à margem do momento, e procurei permanecer seguro ali. Deixei-me
estar um pouco depois que eles entraram pela porta do quarto e súbito
me bateu muito medo e vontade de voltar atrás, pois justamente ainda
dava tempo. Se ao menos o infeliz tivesse insistido em querer ir embora,
ou não tivesse respondido a primeira carta... Deve ter um rim imenso
que nem vai caber no corpo do garoto. Felizmente ganhei autocontrole
e entrei.
Permaneci na porta de prontidão. Germana abriu a maleta e quando
o gordo viu a quantidade de seringas, vidros e lâminas de bisturi
começou a tremer o lábio. Como se sentisse muito calor, retirou
o paletó, afrouxou a gravata e balançou a camisa, pingando
parte do suor nos lençóis da cama. Fui até o banheiro
e enchi a banheira, enquanto Germana retirava um estetoscópio emprestado
da bolsa. Quando voltei, Lúcio estava estirado na cama perguntando
sobre como seria a anestesia, reclamando estar com muita fome, e aparentemente
não se deu conta da ausência de preparativos para a operação.
Mostrou-se constrangido em tirar a roupa na minha frente, mas diante da
cara de iminente fúria de minha colega não esboçou
nenhuma reação. Em poucos segundos estava despido, com Germana
atuando sentada em sua barriga, examinando seu pulso e auscultando seu
tórax de forma pouco convincente. Seu pênis era pequeno, parcialmente
oculto pela adiposidade esparramada pelo peso da moça, com poucos
pêlos pubianos e um testículo maior que o outro. Será
que sua fantasia possuía a modéstia de extirpar o quase imperceptível
ou seria um radicalismo que fizesse questão do maior? Germana amarrou
suas mãos atrás das costas, atou seus tornozelos juntos e
acalmo-o esclarecendo que se tratava apenas de incrementar o acontecimento
com uma refinada fantasia em que ela seria oficial da Gestapo, e ele uma
cobaia judeu sacrificado em nome da ciência. Ele gemeu, aprovando
a cena, e gemeu mais ainda quando ela retirou da bolsa o quepe de oficial
nazista pertencente à coleção de seu pai militar.
Ajeitou o adereço nos cabelos soltos, sorriu e só faltou
ser loira para virar uma ariana perfeita. Em verdade, seu passado glorioso
dava-lhe autenticidade. Ela tivera mesmo um avô alemão morto
na guerra, de nome Otto. De um salto se pôs de pé e sentenciou
que ele estava podre e que precisava de um banho antes da cirurgia. Estalou
o cinturão do sujeito em suas costas obesas e este desabou no chão,
urrando de vontade de agradar. Indeciso, escorregando na borda banheira,
caiu de nariz desajeitadamente na água graças a um chute
de Germana em sua coxa. Água salpicou por todo o banheiro, e sua
cabeça ficou parcialmente submersa.
Encarnei a inconseqüência particular de quem ultrapassa
uma linha perigosa, e aproveitei este instante para atirar meus pés
nas costas do infeliz. Meu peso o fez afundar de novo. Arquejando como
um porco no abatedouro, demorou mais um pouco para emergir a cabeça
e inspirar com toda a força dos pulmões e quando assim o
fez, cerrei meu braço direito em seu pescoço e o fiz inalar
todo o clorofôrmio com o qual empapei meu lenço, tanto que
o excesso pingava aos montes na água agitada da banheira. Debateu
por alguns instantes, e até acertou minha testa com suas duas mãos
juntas, mas enfim estava imóvel.
Germana também ficou absolutamente imóvel, e apenas o
barulho da água era audível no banheiro. Pensei novamente
ter ouvido o barulho de algum casal. Voltei ao carro e trouxe dois baldes
de gelo que despejei na banheira. Apanhei a mochila e retirei um atlas
de Anatomia, soro fisiológico, luvas e pinças; tudo emprestado
de meu primo cirurgião para satisfazer a ingenuidade de minha
companheira, que acreditou que eu já era quase formado, quando na
verdade nunca havia visto uma faculdade de medicina de perto. Temi que
sua paralisia emocional desembocasse numa vontade de sacar o celular da
bolsa, e minimizar a sensação de culpa, possibilidade para
a qual não havia imaginado solução. Assim, concentrei-me
em colocar as luvas e começar a fatiar por cima das nádegas
de Lúcio, e não precisei me preocupar caso Germana voltasse
ao quarto, pois ela enfim se moveu e veio assistir fascinada.
O sangue escorria e coloria a água. Nunca havia cortado ninguém
antes, e a porra do livro não conseguia orientar melhor um leigo.
E depois de arrancar um bom pedaço da pele, parecia estar lidando
com uma sopa confusa de vermelho. Eu sabia que havia algum músculo
chamado grande dorsal, e por perto tinha um tal de serrátil. Imagine
só um músculo que serra alguma coisa lá dentro, acho
que era. Depois que afundei o bisturi já fundo parece que furei
um cano d’água daqueles dos desenhos animados. Começou a
escorrer mais sangue ainda de um canto do buraco. Falei um monte de palavrões,
e a puta em vez de me ajudar, passando outra lâmina de bisturi só
ficava lá vendo o sangue escorrer de uma forma que só faltava
enfiar a cara dentro dos cortes. Lúcio emitiu um ruído estranho,
como se uma vaca mugisse de dentro de seu nariz e pareceu se mexer um pouco.
Não sei porque fiz isto, mas levantei sua cabeça e fiz um
rasgo no seu pescoço maior que o sorriso do gato de Alice. Nos filmes
parece mais fácil, quando mostram um soldado invadindo as linhas
inimigas e passando a faca no pescoço do sentinela de um jeito mais
macio que lâmina de barbear, mas a verdade é que precisei
de um pouco de força para degolar o sujeito, e como não estava
certo de ter conseguido, ainda rasguei umas cinco ou seis vezes até
que minhas mãos estivessem manchadas até o punho e o sangue
quente regurgitasse todo pelo piso branco, combinando com a cor dos corações
pintados em alguns azulejos espalhados entre nove azulejos totalmente brancos.
Gotas de sangue escorriam pela parede externa da banheira. Uma gota gorda
saiu com muito atraso, mas com muito esforço alcançou uma
débil gotinha sem chance e acertou o piso.
Antes que eu terminasse de assistir a corrida de gotinhas, Germana
bateu a bolsa na minha cara e gritou comentários relativos à
minha burrice, mas mais ainda em relação à minha lerdeza.
Estalando a sandália lambida no azulejo sujo, caminhou até
a banheira, agarrou a cabeça abatida e a esmagou com violência
na borda várias vezes até que gotas de sangue também
fluíssem pela testa e nariz, deixando o sangue com mais opções
de por onde fugir. O lado esquerdo de seu rosto parecia afundado, e consegui
visualizar dois dentes repousando no fundo da banheira, lindos semelhantes
a corais.
Senti um novo impacto da bolsa no meu rosto, e não sei bem porque
não reagi metendo a mão naquela vagabunda, mas ao invés
disto deduzi alguma mensagem positiva advinda da dor e recomecei a escarafunchar
o buraco até o alargar bem. Mesmo tendo treinado antes em peixes
e galinhas, me arrependi de não ter treinado em algum macaco bem
gordo porque já estava cansado de mover as mãos, embora não
precisasse mais de manobras delicadas enganadoras. Estranhei o que arranquei,
pois não tinha forma de feijão, mas parecia uma bolota rasgada.
Depois que percebi que tinha arrancado apenas parte do rim. Os tubinhos
que entravam nele estavam esfacelados e sua superfície estava cheia
de riscos vermelhos. Arranquei o resto e apertei os dois fragmentos um
contra o outro, imaginando poder colá-los. Joguei tudo em outro
balde cheio de gelo, e pus-me de joelhos, descansando um pouco. Não
me preocupei em mexer no outro rim, não daria tempo. De certa forma,
eu tinha realizado o sonho do paulista. Ele só queria tirar um testículo,
e não tive culpa que ele não pudesse explicar melhor, por
isto arranquei um dos testículos de trás. Rim e testículo
vão todos pró mesmo pau. Pensei sobre o que tinha dito e
ri durante três segundos. Depois destes três segundos, observei
Germana enfiar a mão em sua bolsa, e comecei a imaginar então
a polícia chegando em virtude da ligação arrependida
que ela faria em seu celular digital.
Mas ela sacou da bolsa um revólver, e desta vez eu fiquei paralisado,
perdendo a coragem de sequer levantar as mãos, não ser compreendido
e levar um tiro. Ficamos apenas em silêncio, um encarando o outro,
então ela muito calmamente me pediu para passar o balde de gelo,
antes disto insistiu que eu entregasse as fotos com os negativos. Depois
de estender o braço e obedecer, não me imaginei choramingando
pela minha vida, já por saber que palavra alguma adiantaria com
a Germana, então só o que fiz foi continuar olhando com uma
cara super séria sua cara também séria. O duro foi
controlar uma maldita compulsão quase infantil, que me faz rir sempre
que encaro seriamente alguém sério. Lembro que depois de
brigar com minha primeira namorada ficamos sérios um olhando para
o outro e comecei a rir, e ela ficou furiosa por achar que eu estava rindo
dela e não da situação; e foi por isto que eu morri
de medo que se começasse a rir naquele momento ia tomar um tiro
na cara, e ia ficar com um sorriso daqueles gatos de desenho animado que
levavam um tiro na boca e ficavam com um buraco em forma de círculo
perfeito entre a arcada dentária superior e inferior. Felizmente
ela encostou a palma da mão na boca, fez um barulho, estendeu a
mão, mandando um beijo para mim; e saiu do banheiro. A cortina foi
aberta. Logo uma mão levava o revólver e a outra o balde
e a chave do carro. Esta rodou na ignição e o veículo
transportou Germana até o portão de saída.
Eu me senti um idiota ali parado no banheiro com um cadáver
do lado, boiando na banheira, então resolvi sair caminhando a pé
até o portão também. Eu continuei a me sentir idiota,
desta vez por estar saindo de um motel a pé. Talvez um casal também
tenha passado por isto, caso tenha entrado sem carro. Mas será que
os motéis deixam entrar um casal sem carro? Por que não deixariam
se eles têm dinheiro? Escutei Germana aos gritos antes de chegar
ao portão e quando já estava bem perto distingui o portão
se abrir para dar passagem. Por certo, ela não quis esperar até
que o funcionário do lugar fosse até o quarto conferir a
ausência de algum telefone e a presença de algum corpo. O
portão estava fechado de novo, e ouvi novos gritos, desta vez de
desespero, feitos pela porteira pelo interfone. O jeito para sair foi colocando
a mão debaixo da blusa simulando outro revólver e mandando
abrir. Juro como foi ridículo, mas pela urgência da situação
toda ela nem prestou atenção e acabou abrindo o portão.
Eu lá estava eu na calçada, e continuando a me sentir idiota,
o fugitivo perfeito fugindo desgraçadamente a pé, enquanto
Germana acelerava meu carro. Ninguém me perseguia. Corri até
a parada de ônibus mais próxima, e logo estava apanhando uma
linha para a Barra do Ceará. Pareço infantil, lembrando sempre
de desenhos animados, mas não pude deixar de puxar por esta referência,
em particular naquelas cenas em que o personagem percebe que o pica-pau
enfiou uma banana de diamante em seu bolso e projeta um imenso globo ocular
para a frente, apertado por grossas veias que parecem empurrar a retina
mais ainda para a frente; e no caso ali a dinamite era minhas mãos
tingidas de vermelho. Grandes manchas vermelhas feito pavios de dinamite
que nunca paravam de queimar, prolongando a agonia do momento da explosão
até o limite do suportável.
Sem saber muito bem o que explicar e o que pedir, chutei o portão
da casa de Tibério e fui recebido pela sua ausência, compensada
um pouco pela alegria do cachorro que lambia minhas pernas com ânimo
injustificado. Larguei minha mão sem objetivo e antevi suas respostas,
que se resumiria na explicação que a idéia foi minha
e ele não era responsável, que para o Corleone cearense só
ia significar que eu não havia conseguido a prestação
de minha dívida e que o jeito seria eu sofrer muito, a despeito
de que ele se importasse ou não com isto. Cada segmento de minha
última seqüência de pensamentos foi vivenciada a cada
metro de caminhada até a varanda. O calor do sol a pino, o cachorro
fedorento molhando meu corpo, as mosquinhas ameaçando entrar em
meu nariz e minha cueca pregada de suor na minha bunda. Ajoelhei e cerrei
minhas mãos ao redor do pescoço, mas novamente os filmes
não se mostraram possíveis porque ao invés de eu conseguir
girá-la e fazer aquele barulhinho de pescoço de sentinela
se quebrando, o vira-lata ficou puxando a cabeça, soltou-se e ainda
me mordeu. Me mordeu o infeliz, mas aí eu entrei na casa, sustentando
meu punho mordido que doía muito, e quando saí com a espingarda
de Tibério meti um tiro no focinho do filho da puta. E esta foi
a história de como o cachorro morreu.
Uma velha grisalha com cara de doida invocou a virgem Maria, quando
ouviu a execução e antes que irrompessem mais velhas doidas
da Barra do Ceará, arrastei a carcaça para dentro da casa.
O animal ainda gania de dor, mas depois que enfiei a faca de cozinha em
seu flanco parou de ganir e ficou muito quieto. Furei sem pudor e arranquei
outro rim e me dei por satisfeito. Na verdade quase dei um beijo no órgão,
mas não dei porque bati com a vista nele e percebi como era pequeno
e mais despedaçado ainda que o anterior. Planejei enterrar o corpo
do cachorro, entregar a encomenda e sair fumando todo satisfeito um pouco
antes do filme acabar e aparecer o nome do diretor; só que imaginei
Tibério encontrando terra remexida no quintal e mesmo que ele fosse
cego, o médico notaria e o poderoso chefão ficaria puto porque
presenteei um rim de cachorro para o filho, e ele me perguntaria se isto
significaria que eu acho o filho dele um cachorro. Então enfiei
a carne no congelador e fiquei olhando um pouco. Além de ridículo,
me sentia burro, e principalmente medroso. Medo de que Tibério voltasse,
por isto bati a porta da geladeira com força e corri para a rua.
Entrei esbaforido em casa em completo contraste com meu irmão
totalmente morgado no sofá totalmente alheio à minha presença.
Vasculhei com o olhar cada recanto da casa em busca de algum recurso apelatório,
quiçá pudesse achar um rim entocado em alguma gaveta. Num
arremedo de idéia que só mais tarde pude admirar pelo alcance
de visão, corri para o quarto ao lado e comecei a rasgar todas as
embalagens de absorvente. Num episódio de sorte sortudamente sortuda
encontrei o tão almejado bilhete. Dei uma gargalhada tão
insana que meu irmão escapou da letargia e veio me olhar com curiosidade.
Balancei o papel na frente dos olhos dele, impressionado pela oportuna
coincidência da viagem ser no outro dia, e rapidamente o fiz arrumar
algumas malas para sairmos de casa antes da perseguição atravessar
o feixe de luz solar da sala e nos apanhar.
Sempre balançando, estávamos prestes a aportar na velha
ilha. Outro sol faiscava em meu rosto e a brisa do mar preenchia minhas
narinas. Estava bebendo cerveja e olhando para o mar, com meu irmão
do lado enfiando o dedo no nariz e jogando na água tudo o que pudesse
apanhar. Estava feliz, pois então preocupado apenas com o tempo
presente, as suposições do amanhã não me afligiam.
Contente, não conseguia enxergar a outra ponta do mar, o continente
congestionado de onde atulhados à margem da praia me aguardavam
a polícia, os matadores paulistas e a máfia cearense. Meu
corpo seria lesado num futuro próximo, mas a beleza da ilha acenava
com possibilidades de conforto momentâneo que me bastavam. Bati no
ombro de meu irmão e bombeamos em sincronia sangue para nossos quatro
rins saudáveis. A sujeira seria depurada.