Amnesiac 

R. parecia exaurido, carcomido pela frustração profissional, sentia-se incapaz de escapar a uma opressão constante. A miscelânea de fatores estressantes em sua cabeça era tão grande que chegou ao ponto de esquecer do problema principal. Tentava constantemente evocar o motivo de sua ansiedade, todas as manhãs, enquanto percorria certo beco cheio de mendigos. Eles o interpelavam, mas racionalmente ele absolvia sua consciência e gentilmente pedia aos pedintes para que não o constrangessem. Ao final de expediente de uma sexta-feira decidiu substituir seu funcionário para fazer a avaliação financeira de uma casa nos subúrbios da cidade, junto do dono da propriedade, um magro de botas, que esperava pacientemente sentado no capô do veículo. Os dois iam calados, sem ao menos conversar trivialidades, contemplando o pôr-do-sol no momento em que o carro atravessava a ponte que levava aos bairros mais distantes. 

O silêncio foi quebrado quando o estranho ofereceu-lhe umas pastilhas de gosto curioso e goles da bebida que trazia debaixo do banco. Inspirado, ele fez um comentário poético sobre o sorriso da lua, e R. estremeceu quando viu também a lua sorrindo, com suas bochechas redondas, sendo emolduradas por serpentes que dançavam no céu crepuscular. Os subúrbios já haviam ficado para trás, o carro trafegava por uma estrada de terra, mal iluminando a neblina que se condensava à frente. Assustado, ele pediu para parar o veículo. 

Estavam na saída de um distrito, no muro posterior de um motel, donde se via seu nome “Motel Pirâmide” iluminado por néon. R.  inclinou o corpo para a frente e começou a vomitar. Seu alívio durou poucos segundos. Logo, uma pedra apanhada pelo motorista foi golpeada em sua cabeça, fazendo com que ele caísse ao chão e rolasse por um barranco até cair no rio. O carro arrancou e o manto negro da noite cobriu o local com um  silêncio apenas quebrado pelo rumor calmo da correnteza. 
R. boiou por uns momentos e então acordou com a cabeça apoiada na margem da água. Parecia tranqüilo, sorrindo para anjos de olhos negros que nadavam próximo de seu corpo. A lua estava belíssima, cheia de estrelas e carros que havia deixado em seu trabalho. Sua primeira namorada descia o barranco para abraça-lo, sua esposa beijava seu peito e sua quase noiva de tempos colegiais acariciava seu cabelo molhado de sangue. Decididamente não havia nada a temer, nem nada a duvidar. O céu descortinava-se à sua frente. 

Olhou ao redor. Conseguiu localizar uma porta de celeiro, uma porta giratória de uma boate que não havia antes prestado atenção, e a porta de serviço do motel, todas promessas de futuro em que cada abertura nos muros e paredes. Algumas destas podia-se fechar, outras não, e mais algumas escondiam-se pelo campo, talvez eternamente vedadas ao alcance humano, escondendo tesouros de valor inestimável, assim como sua memória. Não sabia mais quem era, sabia que existia ao menos. 

Entrou enfim na boate. Uma prostituta usava os olhos para  convidá-lo  a conhecer momentos prazerosos em sua cama. A coitadinha decerto pensava que o deixava louco de tesão, ornamentada com todos os cosméticos oferecidos pelo grande império americano, mas ele procurava disfarçar sua indiferença para não afetar a auto-estima dela, essencial ao seu ganha-pão. A banda da boate tocava uma bossa gostosamente lenta. Sentou longe dela, mas ainda visível e incitou-a a conseguir arrastá-lo aos seus braços. Quem iria conseguir? Só se ela contasse com um bom exército de prostitutas somando sua sedução até ao ponto de vencer a resistência de um homem mais preocupado com sua amnésia. Um copo de bebida foi o que ele usou para compensar a perda de líquido pelo sangue. A banda cresceu o volume de repente, atraindo a atenção de todos os presentes. Foi a deixa para que R. saísse furtivamente e escolhesse um bom carro na entrada. Imaginava que antes praticava assaltos, pois lembrava-se de como abrir um carro e fazer ligação direta. Escolheu um modelo antigo conhecido como Ghost Horse e saiu pela estrada cavalgando seu possante cavalo negro.

Começou a se sentir inseguro e cada lembrança que procurava evocar, convencia-se de estar errado. Procurou se imaginar como uma luz se aproximando de casa, onde enfim iluminaria os pensamentos de seus parentes e dele próprio. Viu-se caindo numa cachoeira, blasfemando contra o destino. A cada certeza que imaginava, convencia-se de estar errado. Teve apenas a certeza de precisar voltar a uma casa de vidro. 

Estacionou o carro em um beco da cidade, andou um pouco pela cidade, tentando encontrar um rosto conhecido, achando enfim uma grã-fina que o lembrava alguém, e realmente parecia conhecida esperava por um possível carro, na calçada de um hotel. Aproximou-se e assustou a dama com suas roupas esfarrapadas e cabeça sangrante. Contou sua história de agressão covarde, mas ela não aparentou acreditar. R. usando de violência agarrou a cabeça da mulher e pediu para que ela olhasse em seus olhos porque era a única maneira de ela saber da verdade, mas ele logo se desencantou. Por mais fundo que ela olhasse, não a interessava nenhuma verdade alheia, somente a própria. O confronto entre um mendigo e uma milionária. As visões continuaram. Viu as pessoas caçando pelas ruas, comendo as mais fracas. Imaginou-se um rato, sendo fatiado, e comida por aquela gata gorda, que certamente esmagaria sua cabeça, guardaria em um pote e comeria mais tarde. R. queria ela para saber que a solidariedade não voltaria, estava encharcada e congelada. Antes de ser abatido, R. a soltou e correu pela calçada. 

Voltou a andar pelo carro, até que a manhã se abriu. Estacionou o carro no encostamento e escutou o sino de uma igreja ao longe. Desejou ser um bebê prestes a ser cortado por Salomão para que seus entes queridos viessem resgatá-lo. Quis ser um disco novo de uma banda famosa na máquina de prensagem porque saberia que logo depois viriam comprá-lo. Continuou tentando descobrir quem era. Lembrou-se de roupas jogadas em uma gramado, de móveis neste gramado, de uma mulher pedindo-lhe para acender uma vela, uma chaminé suja, e da pancada em sua cabeça. Desta vez apenas lembrou-se da localização de um lugar que costumava freqüentar, a bolsa de valores. 

Estacionou o carro a algumas quadras de distância. Pareceu reconhecer os detalhes da porta de entrada, lembrando vários trevos acumulados e o burburinho de movimento humano. Painéis semelhantes a grandes ursos vigiavam os corretores nervosos. Lembrou-se enfim de que havia sido corretor, mas ainda não se lembrava  de mais nada. Quando jovem, julgava que o importante era ser construtivo, domar a corrente de dólares, ienes, marcos e libras que de tão grande poderia embriagar qualquer ébrio e convencê-lo que a cor da água pura era verde. Não conseguia ficar quieto, andando de uma extremidade da bolsa para outra, sentia que sua memória já estava prestes a voltar. Sentia-se sufocado pelos seus vizinhos de bolsa e já preparava-se para ir embora, opção sensata já que seguranças do lugar já se mobilizavam e trocavam cochichos para abandonar aquele senhor de roupas esfarrapadas, no caso eu. 

R. cambaleou pela calçada por alguns instantes, ouviu uma mãe ler para o filho a história bíblica de Daniel na cova dos leões, enquanto executivos de fala elegante passavam apressados por ele. Parou de súbito e passou a prestar atenção em roletas de vários tamanhos que giravam. Sentiu como se girasse também, tonto de fome e cansaço. Causava-lhe inveja ver a pontualidade e a sincronicidade do trânsito da cidade. Fechou os olhos e se viu novamente descendo o rio, como um cadáver. Quando seu corpo chegou ao mar, enfim recobrou a memória. 

Não lembrou-se do número do seu chofer, pois sempre o deixava guardado na memória de seu celular que deveria estar no fundo do rio. Tudo o que queria era chegar logo em casa e trocar de roupa. Chamou um táxi e indicou o caminho a ser percorrido até chegar em sua mansão quase que totalmente espelhada. Passada meia hora estava atravessando o caminho ladeado de árvores tortas e sinistras, onde em verões passados seu pai o havia ensinado a caçar ursos, por isso felizmente possuía o treinamento para caçar o urso de sua memória através da noite, estava carregando a cabeça do animal para casa. 
Logo após entrar na sala e manusear sem interesse seu catálogo de charutos com capa de grosso couro vermelho,  R. escutou a voz de sua mulher que entrava na mansão. “Querido, ela dizia, você não vai acreditar no mendigo que me atacou hoje na porta do hotel...”. Ela não completou a frase quando viu seu mendigo-marido sentado no sofá. Não souberam o que dizer um ao outro. R. foi trocar de roupa enquanto ela cobria algumas janelas com papel para uma posterior pintura, esforçando-se para sorrir de forma lisonjeira. R. sentou-se novamente na sala, constrangido como uma comida congelada, pensando nos milhões de famintos do mundo, sem vontade de conversar nada, nem mesmo política com a rainha do lar, que continuava arrumando janelas. Dizia para si mesmo que queria conversar e queria mastigar muita banha, mas não conseguia se convencer. Pensava no divórcio. Espreitou as vidraças, temendo que alguém lá fora, talvez sua consciência o escutasse em segredo. Sentiu como se um estranho engano estivesse para ser feito. Olhou para o chão e sentiu o peso de um mundo em que todos querem linchar, quando deveriam dar a outra face. Mergulhou o rosto entre as mãos e sentiu-se imensamente vulnerável, como se vivesse em uma casa de vidro. 
 
 
 
 
 
 
 

 
Rodando de novo - Spinning plates